Evidências científicas hoje vêm demonstrando forte relação entre espiritualidade, religião, religiosidade e os processos de saúde, adoecimento e cura, compondo junto dos aspectos físicos, psicológicos e sociais a denominada visão integral do ser humano.



Conhecer melhor o conceito de religiosidade e fé, enquanto forças poderosas na saúde dos indivíduos, vem sendo essência de diversas pesquisas científicas e passando a fazer parte da prática médica. Além dos aspectos comportamentais, a maioria dos estudos existentes demonstram a relação benéfica entre espiritualidade, religiosidade e variáveis fisiológicas e fisiopatológicas de muitas entidades clínicas, incluindo-se as doenças cardiovasculares.

Para mais informações sobre o tema Espiritualidade e Saúde, inclusive falando-nos sobre esta nova disciplina no currículo do curso de medicina da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM-UERJ), o Centro de Apoio à Pesquisa no Complexo de Saúde da Universidade (CAPCS-UERJ) dialogou com Roberto Esporcatte, médico cardiologista, professor-adjunto de Cardiologia da UERJ, coordenador da unidade coronariana do Hospital Pró-cardíaco e Presidente do Grupo de Estudos em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (GEMCA) da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Vejamos atualizações e reflexões sobre o tema.


CAPCS-UERJ – Espiritualidade e religiosidade são, de fato, recursos importantes para a saúde dos indivíduos?

Roberto Esporcatte – Espiritualidade e religiosidade são recursos valiosos utilizados pelos pacientes no enfrentamento das doenças e do sofrimento. O processo de entender qual a relevância, identificar demandas e prover adequado suporte espiritual e religioso, beneficia tanto pacientes como a equipe multidisciplinar e o próprio sistema de saúde. Cerca de 80% da população mundial possui alguma afiliação religiosa e a fé tem sido identificada como poderosa força mobilizadora nas vidas de indivíduos e comunidades.


CAPCS-UERJ – Como tentar entender o termo “espiritualidade” …

Roberto Esporcatte – Espiritualidade é um conjunto de valores morais, mentais e emocionais que norteiam pensamentos, comportamentos e atitudes nas circunstâncias da vida de relacionamento intra e interpessoal. Consideramos importante que seja considerado como espiritualidade o que seja passível de mensuração em todos os indivíduos, independente de afiliação religiosa, o que inclui ateus, agnósticos ou mesmo aqueles com afiliação religiosa, porém sem observação e prática da mesma. A espiritualidade evoca preocupações, compaixão e uma sensação de conexão com algo maior além de nós mesmos.


CAPCS-UERJ – Por favor, poderia nos explicar o conceito de medicina integrativa…

Roberto Esporcatte – De maneira simples, refere-se ao conceito de saúde, não como ausência de doença, mas como completo bem-estar físico, mental, psíquico e espiritual. Para tal, novas visões sobre os mecanismos de saúde, adoecimento e cura, assim como abordagem não medicamentosas convencionais são associadas.

 

 

Nova disciplina na FCM-UERJ

CAPCS-UERJ – Como surgiu a ideia, e qual a trajetória percorrida para implementação da disciplina Espiritualidade e Saúde na FCM-UERJ?

Roberto Esporcatte – O desenvolvimento de atividades sobre espiritualidade e saúde, no âmbito da Sociedade Brasileira de Cardiologia pelo GEMCA, que se realizam desde 2011, desde o início nos estudos e iniciativas, nos deixou clara a relevância da abordagem desta temática para os pacientes e a lacuna existente na formação médica. Daí a ideia da disciplina e nossas ações no sentido de implementá-la na UERJ.


CAPCS-UERJ – Quais as ressonâncias que vêm sendo percebidas no âmbito do Complexo de Saúde da Universidade?

Registro da primeira turma de Espiritualidade e Saúde na UERJ

Roberto Esporcatte – Diversos cenários e disciplinas abordam a relação médico-paciente tanto na graduação como na pós-graduação da área da saúde na UERJ. A proposta da nova disciplina Espiritualidade e Saúde é que se possa abordar com mais coordenação, foco e integração as múltiplas nuances conceituais que compõem a temática.

A repercussão é a melhor possível, com interesse em participar de diversas profissões, tanto docentes como discentes. Nesta primeira fase, de estruturação de conteúdo e estratégias pedagógico-didáticas, poucos profissionais estão atuando diretamente. Não há dúvidas que há muitos profissionais que poderão participar e brevemente serão convidados a dar sua colaboração para o aprimoramento curricular.


CAPCS-UERJ – Poderia nos descrever o grupo de profissionais envolvidos e mestres da cadeira?

Roberto Esporcatte – A disciplina Espiritualidade e Saúde conta com três profissionais responsáveis: Prof. Ricardo Bedirian (Clínica Médica – HUPE), Dr. Pedro Pimenta de Mello Spineti, além de mim, Prof. Roberto Esporcatte (ambos do Serviço de Cardiologia – HUPE).

Nossa participação está sendo executada como atividade extra, à parte das demais responsabilidades nos serviços.

 

 

“Efeito protetor”

CAPCS-UERJ – O que estudos e evidências científicas, neste campo, hoje nos dizem…

Roberto Esporcatte – Um número expressivo e crescente de evidências demonstra associação entre os índices de espiritualidade e de religiosidade e mortalidade, qualidade de vida, com mecanismos supostos alicerçados em uma gama enorme de variáveis biológicas e mediadores, variando de acordo com o modelo de populações saudáveis (ou não-saudáveis), formas de expressão da espiritualidade e religiosidade, cenário de desenvolvimento da pesquisa, etc.

Em uma coorte americana composta predominantemente por cristãos, com idade >40 anos e acompanhadas por um tempo médio de 8,5 anos, observou-se um menor risco de morte, independentemente de fatores de confusão entre aqueles que relataram a presença em serviços religiosos pelo menos uma vez por semana, em comparação a nenhuma presença. A associação foi substancialmente mediada por comportamentos de saúde e outros fatores de risco.


CAPCS-UERJ – Os estudos, podemos dizer, atribuem um “efeito protetor” aos indivíduos que alimentam alguma forma de religiosidade…

Os coordenadores: Prof Ricardo Bedirian, Porf. Roberto Esporcatte e Dr. Pedro Pimenta de Mello Spineti

Roberto Esporcatte – Em revisão sistemática de 2009, espiritualidade/religiosidade mostrou-se associada à redução da mortalidade em estudos envolvendo populações saudáveis, mas não em ensaios de população doente. O efeito protetor da espiritualidade e religiosidade foi independente de fatores comportamentais como tabagismo, álcool, exercício, condição socioeconômica, afeto negativo e apoio social. Quando comparadas, a atividade religiosa organizacional, mas não a atividade não organizacional, mostrou-se associada à maior sobrevida.

Mais recentemente, novos estudos de coorte têm trazido importante contribuições sob a ótica da epidemiologia e as associações entre serviço religioso, mortalidade e qualidade de vida. Na coorte do Nurses’ Health Study, com mais de 74.000 enfermeiras acompanhadas por até 8 anos, observou-se a redução, tanto da mortalidade por todas as causas, como mortalidade por doenças cardiovasculares ou por câncer, em cerca de 30%, quando se comparou mulheres com pelo menos uma vez por semana de frequência a serviços religiosos com aquelas sem nenhuma participação. Nesta mesma população, a frequência a serviço religiosos foi significativamente associada a menor taxa de suicídio.


CAPCS-UERJ – Porque abordar a espiritualidade e religiosidade…

Roberto Esporcatte – A abordagem é muito importante pois muitos pacientes são religiosos ou espiritualizados e suas crenças influenciam na forma de enfrentamento das situações adversas da vida, podendo ajudar a lidar com a doença. Durante os períodos de hospitalização ou doença crônica frequentemente ficam afastados de suas comunidades e impedidos de praticar suas crenças religiosas. Além disso, as crenças pessoais podem afetar decisões ligadas à área da saúde, que podem ser conflitantes com o tratamento.

Muitos profissionais não sabem se os pacientes desejam, concordam, ou estão abertos a essa abordagem. Estudos demonstram que a maioria dos pacientes gostaria que seus médicos perguntassem sobre espiritualidade e religiosidade, gerando mais empatia e confiança no médico e assim resgatando a relação médico-paciente, com um cuidar mais humanizado.

 

 

Sentimentos negativos e adoecimento

CAPCS-UERJ – Objetivos da avaliação da espiritualidade e religiosidade. O que dizer sobre a associação de doenças a sentimentos em desequilíbrios?

Roberto Esporcatte – É fundamental buscar entender as crenças do paciente, identificar aspectos que interferem nos cuidados de saúde, avaliar a força espiritual individual, familiar ou social que lhe permitirá enfrentar a doença, oferecer empatia e apoio, ajudá-lo a encontrar aceitação da doença e identificar situações de conflito ou sofrimento espiritual que exigirão avaliação por um profissional capacitado. Nesta avaliação, torna-se fundamental detectar sentimentos negativos que possam contribuir com o adoecimento ou agravamento do mesmo tais como mágoa, ressentimento, falta de perdão, ingratidão, entre outros.


CAPCS-UERJ – Perdão e consciência vêm ganhando espaço nos meios acadêmico e científico. Há pesquisas que mostram que a falta de perdão tem criado problemas de saúde, seja câncer, depressão, alergias ou dores, todos associados às mágoas guardadas. Poderia nos descrever melhor esta dinâmica?

Roberto Esporcatte – Quando se aplicam questionários sobre estes valores, estas correlações se fazem presentes. Hoje se estuda muito, e os resultados iniciais são muito promissores, o papel das intervenções mobilizadoras do perdão, gratidão, resiliência, etc.

 

 

Equilíbrio e compreensão

CAPCS-UERJ – Evitando conflitos. Como abordar a espiritualidade e religiosidade do paciente…

Roberto Esporcatte – Existem várias formas de abordar esse tema e o mais importante é que isso seja feito de forma sensível, sem promover a religião ou prescrever orações ou práticas religiosas. Tampouco o indivíduo deve ser coagido a adotar crenças ou práticas específicas.

Na maioria das vezes, a abordagem pode ser feita naturalmente, durante a entrevista, no momento em que o médico avalia os aspectos psicossociais. Deve-se inquirir sobre a importância da espiritualidade, da religiosidade e da religião para o paciente, se esta o ajuda a lidar com a doença se gera estresse ou sentimentos negativos (culpa, punição, etc.), se o influencia na adesão ou em decisões sobre o tratamento e se há alguma necessidade espiritual não atendida.

Para essa abordagem não ser conflitiva, há que haver preparo e aceitação de ambas as partes: profissional de saúde e paciente.


CAPCS-UERJ – Portanto, equilíbrio e compreensão são “palavras-chave” …

Roberto Esporcatte – Para evitar conflitos na relação médico-paciente, deve-se ter sempre em mente que esta área é profundamente pessoal, além de intensamente emocional, e por isso o médico não deve abordar conteúdos emocionais sem a aproximação adequada dos aspectos espirituais e/ou religiosos. Religião nunca deve ser prescrita, forçada ou mesmo encorajada, sob o risco de se acrescentar culpa ao fardo provocado pela doença.

O respeito a espiritualidade, religiosidade e as crenças individuais é fundamental e deve compor com o plano terapêutico, se não for prejudicial. Em questões relativas à espiritualidade e religiosidade devemos ter em permanente lembrança que é sempre melhor compreender do que aconselhar.


CAPCS-UERJ – Na Europa e nos Estados Unidos, cerca de 80% das faculdades já têm essa cadeira no currículo. No Brasil, ainda estamos, por assim dizer, devagar. Há, ainda, muita rejeição no meio acadêmico?

Roberto Esporcatte – Não há rejeição. O reconhecimento da importância é inconteste. O que falta é iniciativa e apoio. Mas estamos caminhando. E esta disciplina Espiritualidade e Saúde na UERJ nos denota consideráveis avanços.



Por Felipe Jannuzzi
Jornalista do CAPCS-UERJ